Por : ALINE RIBEIRO, BELÉM
O Natal do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura será uma festa. Ao lado da mulher e dos três filhos, ele vai comemorar a data no conforto de sua casa em Altamira, no interior do Pará. Haverá música e fartura na ceia. O momento será especial, já que há tempos ele não se reúne com a família. Bida, como é conhecido, foi condenado a 30 anos de prisão por encomendar a morte da missionária americana Dorothy Mae Stang, de 73 anos, assassinada em fevereiro de 2005. Ficou na cadeia pouco mais de cinco anos até obter, no mês passado, o direito de cumprir o restante da pena em regime semiaberto. O benefício garante a saída em festejos como Natal, Semana Santa e Dia dos Namorados. Os presos que conseguem um emprego num órgão público podem ainda ficar soltos nos dias de semana e voltar à cela apenas para dormir. “Pretendo trabalhar e viver minha vida”, disse Bida, em entrevista exclusiva a ÉPOCA (leia a íntegra). Bida desfrutará o mesmo gosto de liberdade que três de seus quatro comparsas já experimentam. Rayfran das Neves, o pistoleiro de aluguel, está no semiaberto desde o ano passado. Amair Feijoli da Cunha, o Tato, intermediário do assassinato, cumpre pena em regime domiciliar numa fazenda no interior. Clodoaldo Carlos Batista, o Eduardo, coautor do crime, se aproveitou do regime aberto, que permite passar o dia livre, para não mais voltar. Está foragido desde fevereiro.
Neves trabalha no almoxarifado de uma instituição do governo. Pega ônibus, tem celular e tempo para o namoro recém-engatado com a funcionária de uma creche. Tato está sempre flanando pelas ruas do município de Tailândia, a passeio ou atrás dos afazeres com o gado. Sua única obrigação é se apresentar à delegacia local uma vez ao mês. O desaparecimento de Batista era, até a semana passada, desconhecido de muitos envolvidos com o caso. “Não faço ideia do paradeiro dele”, diz o advogado Raimundo Cavalcante, um evangélico fervoroso que, além de Batista, defende outros três envolvidos no crime. Juízes e promotores que participaram do julgamento do assassinato de Dorothy Stang foram informados da fuga pela reportagem de ÉPOCA.
Batista era parceiro do pistoleiro Neves e estava com ele quando Dorothy foi alvejada com tiros, os seis à queima-roupa. Sua pena foi a mais branda de todas, 17 anos. Antes de fugir da cadeia, ele vivia numa chácara na região metropolitana de Belém. Em troca de moradia e um salário, trabalhava como caseiro. À noite, voltava para a Casa do Albergado, uma espécie de centro de reeducação de detentos, para dormir. Mesmo sob um regime permissivo, Batista decidiu ignorar sua dívida com a Justiça – e não foi a primeira vez.
No ano passado, ele já abandonara a prisão. Foi considerado foragido, mas se reapresentou espontaneamente e não recebeu punição alguma. O juiz Amarildo José Mazutti manteve seu direito de cumprir o castigo no regime aberto, em vez de passá-lo para o semiaberto (a lei não permitiria transferi-lo imediatamente para o fechado). “Ele estava doente e sem dinheiro para a passagem de ônibus”, afirma Mazutti. “Quando a justificativa é plausível, temos de acreditar.”
Pouco mais de seis anos depois de um dos crimes brasileiros de maior repercussão internacional, o desfecho do caso Dorothy faz soar o alarme da impunidade. Apesar das penas altas – entre 17 e 30 anos –, nenhum dos envolvidos passará muito mais que cinco anos na cadeia. Como o assassinato ocorreu em 2005, eles são beneficiados pela legislação antiga, segundo a qual o condenado ganha o direito de pleitear o regime semiaberto depois de cumprir um sexto da sentença. Em 2007, o Congresso Nacional aprovou algumas mudanças na lei dos crimes hediondos. Hoje, o tempo mínimo que um réu primário deve ficar atrás das grades em tempo integral é dois quintos da pena.
O assassinato de Dorothy, na pequena Anapu, um município de 20 mil habitantes a 765 quilômetros de Belém, é só um retrato do panorama de desordem agrária do Pará. Anapu surgiu com a Rodovia Transamazônica e explodiu com a notícia da construção da hidrelétrica de Belo Monte na vizinha Altamira. Esse caótico cenário nasceu nos anos 1970, no período de colonização da Amazônia. Durante a ditadura militar, o governo federal estimulou a integração das terras do Norte ao restante do Brasil. A construção da Rodovia Transamazônica, hoje com quase 5.000 quilômetros, foi o marco do que prometia ser um futuro glorioso. Havia também a sensação de que os estrangeiros estavam de olho na floresta.
Sob o lema “Levar terra sem homens para homens sem terra”, o então presidente, Emílio Médici, oferecia lotes a quem chegasse de outros cantos do país – desempregados e sem-terra, vindos do Nordeste, ou especuladores, egressos especialmente do Espírito Santo, da Bahia e de Minas Gerais. A massa humana que avança pela fronteira da mata segue sempre o mesmo padrão. Os primeiros a chegar são os madeireiros. Já capitalizados com a destruição da Mata Atlântica, eles saqueiam toda a madeira de lei que encontram pela frente. Os fazendeiros vão no rastro, queimam o que resta e acomodam seus bois. Quando o pasto enfraquece, as áreas dão lugar à agricultura intensiva.
Além de número um em crimes no campo e trabalho escravo, o Pará é também campeão de terras em situação irregular. Um quarto de seu território é de áreas griladas, um total de 30.000 quilômetros quadrados (o equivalente à área da Itália). Há várias maneiras de grilar uma propriedade. Todas elas passam pela corrupção de cartórios, pela conivência dos institutos de terras federais e estaduais e pela pistolagem. É comum no Pará uma única área ser reivindicada por vários donos – e ganha quem tem mais poder de fogo. Depois de “legalizar” a terra, os grileiros costumam aumentar seu tamanho. Em um caso curioso, há um registro num cartório de Vitória do Xingu de uma fazenda com 4,10 milhões de quilômetros quadrados – quatro vezes o tamanho do Pará inteiro. “O Estado tem mais papel que terra. Isso viola o princípio da física”, diz Girolamo Treccani, professor de Direito Agrário da Universidade Federal do Pará (UFPA), autor do mais completo livro sobre o tema.
Durante a colonização, o Incra concedia terras públicas a famílias de colonos ou cooperativas agrícolas. Em troca, os novos ocupantes tinham de tornar aquelas áreas produtivas em cinco anos. Não era permitido transferir a propriedade a terceiros sem autorização do dono – o governo. Mas o comércio ilegal de terras ganhou vulto, e o plano dos militares fracassou. Em Anapu, só permaneceram os que não conseguiram ir embora. E, claro, aqueles que tinham intenção de enriquecer à custa da fragilidade fundiária. Foi assim que Bida e o outro acusado de encomendar o assassinato de Dorothy, o fazendeiro Regivaldo Pereira Galvão, ou Taradão, chegaram à região (ele é o único dos envolvidos preso em regime fechado. Foi detido em setembro).
Nascida em Dayton, no Estado americano de Ohio, Dorothy Stang chegou ao Brasil em 1966. Com um português mal falado (despertava o riso de amigos por confundir o feminino com o masculino), percorreu boa parte das estradas esburacadas da floresta em sua lambreta, declarando uma paixão incondicional pela natureza. Naturalizou-se brasileira, foi professora de um seminário e ajudou a construir escolas em Anapu e a treinar professores. Ao lado de outras missionárias, implantou cooperativas para os trabalhadores da região, uma alternativa à derrubada da mata, fonte de renda com menor impacto ao ambiente. Uma de suas principais conquistas foi uma fábrica de processamento de frutas amazônicas, erguida com recursos da própria família. “A luta dela era uma luta intelectual”, afirma Edson Cardoso, um dos promotores responsáveis pela condenação dos assassinos. “Em vez de estimular a invasão, ela reivindicava ao governo os documentos para que essas famílias tivessem direito à terra.”
Dorothy acreditava em um novo modelo de reforma agrária. Queria assentar as famílias de agricultores em pequenos lotes de 100 hectares. Elas viveriam do plantio de subsistência e do que retirassem coletivamente da floresta, sempre respeitando o que a natureza fosse capaz de repor. Uma inovação em seu projeto dizia respeito ao contrato de posse. A despeito de se tornar donos da terra, esses agricultores tinham o compromisso de não vendê-las a grandes fazendeiros. Se quisessem partir, teriam de negociar com a associação. Era uma forma de evitar que os lotes fossem engolidos pelos grandes desmatadores, como ocorreu em boa parte do Estado. O plano de Dorothy era assumir as áreas públicas controladas por grileiros e repassá-las, com a anuência da lei, às famílias sem-terra. O alvo da disputa com os fazendeiros que encomendaram sua morte era o lote 55, onde ela pretendia estabelecer seu Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança. Seus adversários consideravam os assentamentos um retrocesso econômico – argumento que faz sentido. Defender seu modelo de reforma agrária equivale a ignorar a relevância da grande propriedade, explorada de modo sustentável, para atingir os índices de produtividade necessários para o avanço e o desenvolvimento da Amazônia e de todo o Brasil. A trágica realidade da região é que esse debate se trava não apenas com ideias – mas frequentemente com armas. Em 2003, a Câmara Municipal de Anapu declarou Dorothy persona non grata na cidade. Sua resposta foi elevar o tom das denúncias.
A luta da irmã Dorothy era uma luta intelectual "
Edson Cardoso, promotor do caso
No dia em que foi assassinada, Dorothy levava documentos do Incra acatando a demanda dos assentados de ficar na terra. Não era um título definitivo, mas trazia esperança para ela. Ela estava eufórica. Ao cruzar com o pistoleiro Rayfran Neves e seu comparsa Batista na pequena estrada tomada por lama, Dorothy comunicou-lhes a notícia. Quando percebeu o revólver calibre 38 nas mãos de Neves, Dorothy sacou de uma bolsa de lona, companheira inseparável nas andanças, uma Bíblia surrada. Leu então uma passagem para seus executores. Impiedoso, Neves atirou à queima-roupa e fugiu. “Virei as costas e corri”, disse Neves a ÉPOCA, na casa de seu advogado. “Só percebi o que tinha feito dias depois, quando estava sendo caçado pela polícia.” Neves sustenta a mesma posição assumida pela defesa dos condenados desde o começo do processo. Afirma que Dorothy era uma infiltrada do governo americano com o objetivo de explorar as riquezas naturais da Amazônia. “Ela me disse que ia tirar toda a madeira do lote e exportar para os Estados Unidos.”
A morte de Dorothy de certa maneira fortaleceu o movimento que ela ajudou a idealizar. Cerca de 230 famílias vivem hoje nas propriedades do PDS Esperança, algumas em mais segurança, outras ainda atormentadas pelos conflitos. O lote 55, disputado por Dorothy com seus assassinos, está ocupado por clientes da reforma agrária cujo único meio de sustento é a roça. “Mesmo com as dificuldades, a caminhada do povo avançou”, diz Jane Elizabeth Dwyer, missionária da mesma ordem religiosa de Dorothy, a Notre Dame de Namur, e hoje sua sucessora. Embora haja conquistas, a situação em Anapu ainda é tensa. Em janeiro deste ano, madeireiros que tentavam atuar em uma área ilegalmente interditaram uma estrada para impedir a passagem dos sem-terra. A posse dos lotes na região ainda não foi regularizada pelas autoridades.
Dorothy Stang foi vítima do pistoleiro e de seus mandantes. Mas também de um modelo de colonização que favoreceu o caos fundiário e os conflitos por terras. Os riscos que corria eram claros. No relatório anual de violência no campo de 2004, publicado pela CPT, seu nome aparecia entre os 160 ameaçados de morte no Brasil – o preço de sua vida era um dos mais altos, R$ 50 mil. Mas ela era destemida. Certa vez, numa entrevista, disse: “Ninguém vai ter coragem de matar uma velha como eu”. Naquela manhã chuvosa de 12 de fevereiro de 2005, Neves não só pôs fim à ingenuidade de Dorothy, como mostrou ao mundo a situação primitiva de algumas regiões do Brasil. Locais onde o faroeste verde determina as regras. Seus inimigos não contavam com um contratempo. “Ela virou a santa da Transamazônica”, afirma Neves. Ele ri e olha para o vazio.
FONTE: REVISTA ÉPOCA
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